Disclaimer: O texto a seguir é extraído das minhas produções em uma das matérias do curso de Licenciatura em Música na Universidade Estadual de Londrina. Portanto, não estranhem a mudança na linguagem, ela só é mais formal. Infelizmente a exclusão da academia começa pela linguagem, portanto, esses textos vão ter um caráter bem menos coloquial do que os outros artigos e palavras que coloco nesse blog, tentando fazer com que você se sinta próximo de mim, como numa conversa de botequim do dia a dia. De qualquer forma, boa leitura:
Resumo
O presente trabalho pretende fazer uma breve síntese sobre a retórica empregada no discurso musical instrumental, apresentando as diferentes visões sobre esse assunto comparando três autores principais. O trabalho aborda ainda a teoria das tópicas na ênfase musical, e busca entender as origens da persuasão e do convencimento nessa retórica específica.
Introdução
A música instrumental difere-se das outras em seus aspectos, já que a questão da mensagem se resume a elementos musicais e nexos culturais daquele contexto onde é produzida e consumida. A pretensão aqui se faz na busca das origens da adesão ou não de determinados discursos musicais, como por exemplo na música instrumental brasileira. Entende-se que a música popular apresenta um empecilho em relação a abertura para análise, já que é menos documentada que a música de concerto (ou música erudita), e a análise das estruturas musicais dependem a priori de documentação PIEDADE (2007, p.1). O autor, ressalta que a maior parte da produção popular não está perpetuada em partituras, mas sim em gravações fonográficas, e nesse sentido, essa análise depende também de transcrições. Dessa maneira, a complexidade dessa análise se dá de imediato já nesse ponto, já que uma transcrição dificilmente será exatamente aquilo que foi executado no momento da performance:
“Em geral, o foco da análise é a esfera melódica (e sua segmentação em temas, frases, motivos, etc.) e a forma (organização da apresentação das estruturas musicais no tempo), porém a compreensão da música popular muitas vezes exige a abordagem de vários aspectos como, por exemplo, a performance e a recepção.”
PIEDADE (2007, p.1)
Ferramentas
Como ferramenta de análise, os autores utilizam-se da teoria das tópicas, e da teoria da nova comunicação para a observação dos discursos musicais. Para Anjos (2012, p.2), o fenômeno da comunicação ocorre quando algo nos faz pensar e nos violenta, o que é diferente de receber algo passivamente. O autor frisa ainda que, tratando-se de nova teoria da comunicação, não se deve pensar apenas no fenômeno da transmissão de algo, pois a sensação, as ideias e as intencionalidades podem não causar o mesmo efeito da fonte criadora.
Nesse sentido, como já mencionado, Piedade (2007, p.1) disserta sobre a importância de considerar-se não só o texto musical na reflexão sobre a análise de um discurso, mas em diversas circunstâncias nas quais uma obra está envolvida, e tornar então obra e contexto objeto de estudo, de maneira concatenada. Há também o destaque para a desconstrução da análise formal ocorrida a partir dos anos oitenta no texto desse autor, chamando atenção para o movimento que ficou conhecido como Nova Musicologia. Adicionalmente, é interessante também fazer a ressalva para a análise musical levando em conta a questão dos gêneros musicais, que em Piedade (2007, p.2) passa a ser uma maneira de abordagem dos discursos.
Levando em conta a relação entre música e expressão, segundo Silva (2015, p.117), as interações entre orador e público ficam prejudicadas em um discurso não verbal (como é o caso da música), e outros parâmetros devem ser levados em consideração para a avaliação da adesão ao discurso que não aqueles da retórica tradicional. É interessante o destaque incisivo que Mattheson (apud BARTEL, 1996, p.29) faz sobre a questão da importância dos afetos na adesão do ouvinte ao discurso musical: de forma genérica, tudo o que acontece sem os afetos não significam nada, não fazem nada, e não valem nada.
“Mesmo uma sequência descontínua de sons, parametricamente falando, pode apresentar continuidade em algum nível, como por exemplo no nível temporal, como é o caso da composição por justaposições de Stravinsky.”
SILVA (2015, p.120)
Desenvolvimento
Brevemente apresentadas essas diversas visões acerca do discurso musical, vale a pena revisar a questão das tópicas discorrida por Piedade (2007, p.2), que revela a noção de tópicas, que seriam as fontes base de um raciocínio. Novamente, esse autor explana a retórica musical, tratando da música como um discurso, com destaque para a ideia de figuras, e discorre sobre figuras de palavras (ou tropos) e figuras de pensamento no âmbito da elocutio:
“Figuras de palavras dizem respeito à formação linguística e consistem na transformação desta, por meio de categorias de adiectio, detractio, transmutatio, enquanto figuras de pensamento dizem respeito aos pensamentos (auxiliares), encontrados pelo sujeito falante para a elaboração da matéria e, por conseguinte, são em princípio, objeto da inventio.”
PIEDADE (2007, p.2)
Piedade ressalta dessa maneira que as figuras de pensamento são distintas dos tropos, já que eles dizem respeito à alteração semântica dos vocábulos. Há outra ressalva interessante do autor dizendo que as unidades musicais do discurso são por vezes atribuídas de qualidade ou ethós através de convenções culturais, e adiciona que o encadeamento das unidades arquitetam uma parte do discurso musical e sua lógica. Dessa forma, a importância da emoção e da significação se dá por meio do controle da expectativa, pelas ideias de satisfação ou de tensão oriundas nos processos tonais formais.
Conclusões
Em suma, a teoria das tópicas trata da dimensão retórica da música e lida com a expressividade e o sentido musical PIEDADE apud RATNER, 1980; AGAWU, 1991; HATTEN, 1994, 2004 (2007, p.3). Por conseguinte, o autor nos apresenta a problemática da distância entre o campo de estudo desse universo (geralmente a música de concerto), e a música brasileira com unidade sociocultural em desenvolvimento. Essa contraposição se dá principalmente pela questão da escrita musical, uma vez que essa é parte fundamental do “roteiro” das tópicas em um contexto de concerto, o que já não acontece na música improvisada, em que as posições das tópicas não são pré-definidas. “Creio que as tópicas de um discurso musical (entendido como posições estruturais dotadas de qualidade sígnica determinadas) são experimentadas pelos próprios intérpretes na sua prática musical, bem como pela audiência. PIEDADE (2007, p.3)”.
Quando se trata da busca pela retórica da musicalidade brasileira, o autor faz alusão à malandragem, a audácia virtuosa, e salienta o estilo interesseiro e malicioso, porém elegante. Além disso no cenário do choro, ele ressalta o fraseado do flautista, geralmente o músico da roda que domina leitura de partitura e dessa maneira marca sua performance com frases modificadas em relação ao que está notado, a fim de desafiar os colegas de grupo. A esse estilo e conjunto de tópicas, PIEDADE (2007, p.4), dá o nome de brejeiro.
“O brejeiro na musicalidade brasileira se difere é brincalhão, difere do gesto que se entende por scherzando, por seu caráter menos infantil e mais malicioso e desafiador. A figura do malandro na cultura carioca e brasileira que em geral alude a este tópico: o malandro que ginga com os pés, é esperto e competente (na ginga),desafiador (quem me pega?)”
PIEDADE (2007, p.4)
Nesse sentido, o pesquisador exemplifica musicalmente esse tipo de gesto “malandro” com variações melódicas e rítmicas por meio do repertório do choro, como em “Um a zero” de Pixinguinha e “Apanhei-te cavaquinho” de Ernesto Nazareth, e destaca o ataque falso, o engano proposital, os deslocamentos rítmicos e irregulares.
Adicionalmente, Piedade destaca algumas das principais influências e a miscelânea que a música instrumental brasileira se arquitetou em suas diversas e consequentes tópicas, como:
Valsas, fados e serestas
- Modinhas
- A identidade nordestina
- Jazz Bebop
- Universo afro:
- Batuques
- Lundus
- Jongos
- A música do sul (Incluindo a Argentina, Urugaia e Paraguaia)
- Guarânia
- Chacarera
- Milongao
- Tango
- Os Ameríndios
- A influência Árabe
Dessa forma, dada a complexidade do assunto é possível que as pesquisas sobre as origens da retórica da música instrumental, seja ela brasileira ou não, nunca se esgotem, dada a teia de influências, os contextos e nexos sociais e musicais em que se desenvolvem e se ampliam. De qualquer forma, o presente trabalho pode servir de ferramenta e de ponto de partida para uma investigação mais intensa em busca da profundidade desses discursos, da adesão pelo público, e das interações e relações oriundas dele, além das diferenças e semelhanças entre as sortidas retóricas musicais.
Referências
- ANJOS, Guilherme Herdade Linberger Dos. Música e comunicação: a música barroca como processo comunicacional em movimento. Disponível em: <http://www3.eca.usp.br/sites/default/files/form/ata/pos/ppgmus/guilherme_dos_anjosmus_etno.pdf>.Acesso em: 02 fev. 2018.Londrina 31/01/2018
- BARTEL, Dietrich. Musica poetica: Musical rhetorical figures in german baroque music. [S.L.]: University of Nebraska Press, 1997. 471 p.
- PIEDADE, Acácio Tadeu De. Expressão e sentido na música brasileira: retórica e análise musical. Revista eletrônica de musicologia, [S.L], v. 11, p. 1-15, set. 2007. Disponível em: <http://www.rem.ufpr.br/_REM/REMv11/11/11-piedade-retorica.html>. Acesso em: 02 fev. 2018.
- SILVA, Willian Teixeira Da. A adesão ao discurso musical contemporâneo: uma abordagem retórica. Revista Trivium, [S.L], v. 1, p. 117-126, mar. 2015. Disponível em: <http://www3.eca.usp.br/sites/default/files/form/biblioteca/acervo/producaoacademica/002721447.pdf>. Acesso em: 02 fev. 2018.