Será que o artista ainda existe?

Andando pra casa vindo do mercado, saí na rua e fiquei olhando a lua cheia vermelha de hoje, que para alguns povos antigos significava que vai ter derramamento de sangue. E então fiquei imaginando: será que o artista ainda existe?

Quando eu era adolescente, as pessoas saiam no soco literalmente pra defender o seu artista favorito. Quais foram os últimos novos artistas que você conheceu e se tornou fã? Como uma dinâmica que trata a música somente como mais um post: arrasta pra cima, arrasta pro próximo, arrasta pro próximo, arrasta pro próximo, arrasta pro próximo (você já entendeu…) pode ter potência pra construir fãs pra uma vida toda?

Atualmente não parece ter espaço pra construção de novos artistas, com um lastro e um legado de décadas, com uma proposta estética que marca uma época. Entende o que eu digo?

Quais foram as últimas grandes bandas que você conheceu e se apaixonou? Pessoalmente, não consigo me lembrar. Lembro de grupos minúsculos como Metá Metá, Tom Misch, ou Childish Gambino, Pedro Martins e Daniel Santiago. São duos, artistas solo, ou no máximo trios. Mesmo amando essa galera toda e lembrando deles na última década, não sei se me enxergo como um fã assíduo dessas pessoas.

Acredito que tem a ver com a mudança no padrão de consumo causada pelas redes sociais, pela dilatação do tempo que elas causam, e pelo estouro dos modos de produção musical digitais, que são muito mais baratos do que contratar dezenas de músicos, alugar um estúdio, etc. Talvez possa ter também alguma relação com o momento da construção da subjetividade e fase da vida.

De qualquer forma, é muito mais barato fazer com que um VSTI faça o mesmo trabalho. E sabe o que é pior? Mesmo uma pessoa letrada musicalmente e com um ouvido atento para o timbre, talvez não seja capaz de reconhecer se é um humano tocando ou um instrumento virtual. Sem mencionar as inteligências artificias generativas…

Eu acho mesmo é que a gente enquanto músico “tamo fudido”! Sinto muito em dizer isso, mas é realidade. Especialmente porque o mercado é indiferente se é humano ou não tocando. O que interessa é quantos singles você consegue lançar por mês, quanto engajamento você tá gerando, ou seja, quanta receita.

O que é triste é que eles não pensam em um lastro, um legado, um catálogo como havia nas gravadoras, que pode ter uma penetração muito menos efêmera e de longuíssimo prazo, como são as obras dos artistas que amamos.

Quanto mais gente upando músicas por segundo, melhor. Só no Spotify, são 100 mil novas músicas por dia. Importa se esses artistas são conhecidos? Par aos stake holders dos meios de produção e distribuição digital, certamente não…

Aí eu te pergunto: como um novo artista vai conseguir construir uma base de fãs? Trabalhando anos de graça gerando conteúdo todos os dias sem retorno de receita alguma? É isso que os coaches de música e carteira propõem? Sabe por que eles estão te vendendo isso? Porque estão buscando um mercado aparentemente Busines to business (inferindo que outro músico é um pequeno negócio), e por que eles mesmos não conseguiram sucesso enquanto artistas tão pouco construir uma base defãs. E então mudam o foco pra educação digital, que também está saturadassa de milhões de cursos online e semana gratuita de qualquer merda, primeiro congresso online de qualquer conhecimento superficial gratuito… Novamente: o que importa é vender exponencialmente na internet.

Parece muito pessimista? Bom, alguém precisa traçar o panorama das condições materiais da realidade. Penso que estamos especialmente fudidos também porque os cursos de música do país são extremamente conservadores, especialmente porque são classisistas, colonialistas, sexistas, estão pautados em um repertório falido, desconexo da realidade e além de tudo isso ignoram a questão da gestão da carreira nas suas grades.

Além de tudo isso, o mercado musical é extremamente informal e virtualmente inexistente. Vive a mercê do mercado do entretenimento e da publicidade. Não existe mercado musical com autonomia e saúde própria, ele está sempre se apoiando em outras indústrias. Para além de tudo isso, a classe musical nem mesmo se emancipa pra se enxergar como classe e ter representação política.

Não vejo bandas ou grupos novos que conseguem construir base de fãs sem se apoiar em editais e incentivo público. Em geral as pessoas tem tentado carreira solo, é mais barato, é menos infra. Use vst, junte-se a outros artistas, faça um festival e reze pra que juntos pelo menos fiquem no zero a zero no balancete da sua produção. Não se engane, é obrigação do estado fornecer acesso a cultura. “A gente não quer só comida, a gente quer comida diversão e arte”. É constitucional e fundamental. Mas vamos depender exclusivamente da boa vontade do estado e da política momentânea pra saúde das nossas carreiras? Ou depender de donos de bares? Até quando vamos viver de cerveja e porção de batatas como cachê e morrer sem construir uma base sólida de fãs a longo prazo?

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